CRIANÇAS EM ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Foi hoje noticiado que no ano de 2010, um total de 5.620 crianças até aos 14 anos de idade vivem em regime de acolhimento nas suas duas vertentes: institucional e familiar; e que desses, 20 % apresentam deficiências mentais (1.134). Segundo a notícia (publicada hoje no Diário de Notícias) estes dados constam do relatório Caracterização das Crianças e Jovens em Situação de Acolhimento em 2010, relatório ainda não divulgado publicamente mas ao qual o jornal teve acesso.
A notícia refere que o relatório fala de deficiências mentais profundas e de dificuldades emocionais agudas e de socialização, que pedem acompanhamento psiquiátrico regular ou mesmo contínuo. O jornal entrevistou Susana Carvalhal que afirmou que essas crianças “não nascem com esses problemas, mas sim as instituições que acabam por transformar as crianças com esses problemas (…) desde cedo [os menores institucionalizados] exploram pouco o desenvolvimento intelectual e de adaptação social que é suposto ao longo dos anos para se tornarem adultos normais (…). Quanto mais tempo estão em instituição, pior é para a estabilidade emocional e mais potencia estes problemas mentais”.
Sobre esta realidade exposta por Susana Carvalha, pedopsiquiatra especialista em menores institucionalizados, complemento afirmando que não apenas o acolhimento institucional promove as dificuldades emocionais nas crianças, mas também a sua situação familiar: passada, presente e futura tem um peso substancial no surgimento e agravamento dessa dificuldade. Justificando a minha afirmação:
O acolhimento institucional é uma medida de colocação, prevista no artigo 35.º alínea f) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo [LPCJP] que apenas pode ser aplicada quando todas as outras que a antecedem foram já avaliadas e se mostraram inadequadas ou insuficientes para retirar a criança do perigo em que se encontra. O perigo (que está definido no artigo 3.º, n.º2 da LPCJP) em que a criança se encontra, raramente é uma situação pontual, mas antes uma situação continuada no tempo. Muitas destas crianças estão – por vezes durante anos – integradas em contextos familiares e sociais instáveis, desestruturados, com modelos parentais e de referência desregrados, maltratantes e/ou desviantes. Temos assim apresentada a situação familiar passada.
Quanto à situação familiar presente, temos os casos em que as crianças continuam a ter contato com a família, que não se mostra parte ativa e colaborante (e muitas vezes interessada) na sua própria reestruturação, nem na “reparação emocional” da criança. Assim, a mesma família que colocou continuadamente a criança em perigo e que, apesar de todo o empenho e estratégias facultadas pelas diversas equipas com quem já trabalharam, não efetua alterações significativas na sua situação familiar e vivencial. Quem trabalha em acolhimento institucional constata quase diariamente o quanto as visitas e os contatos telefónicos dos parentes podem ser perturbadores e promotores de enorme instabilidade na criança. Quantas vezes a própria criança afirma que não quer aquela família, que quer e merece outra e, mesmo assim tem de ir para a sua “visita”. Depois há as outras em que, não havendo possibilidade de retorno da criança à família de origem, urge a aplicação de outra medida, nomeadamente a prevista no artigo 35.º nº 1 alínea g): Confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção. Mas, enquanto essa medida não é decretada (se for), os pais continuam a manter os seus direitos de visitas e contatos com a criança continuando, frequentemente, a oferecer-lhe promessas vãs, continuam a desiludi-la e a frustrar as suas expetativas aumentando a sua ansiedade, instabilidade emocional, capacidade de confiar no outro, etc. etc..
Quanto à situação familiar futura, refiro-me em concreto às crianças que já viram a medida acima mencionada decretada e estão dessa forma em situação de adoptabilidade mas que, por razões várias, tal sonho não é concretizado ou demora a sê-lo. Quanta ansiedade estas crianças acumulam dentro de si, quanta tristeza, inveja, injustiça sentem quando “ele” ou “ela”, que entrou depois de mim, arranjou pais primeiro que eu(frase que já ouvi várias vezes). Se a nós nos dói no mais íntimo pedacinho de alma, imaginem o quanto dói a estas crianças que já sofreram e continuam a sofrer tanto. Os números do relatório estão corretos, obviamente, contudo e pela minha experiência, todas as crianças que vivem em acolhimento institucional sofrem de problemas emocionais, ou seja, 100% das crianças que vivem em acolhimento institucional têm problemas afetivos.
Creio ter apresentado alguns (e apenas alguns) exemplos do quanto a situação familiar, além do acolhimento institucional em si, pode ser o motor para que as crianças desenvolvam os problemas emocionais referidos no relatório.
Quero contudo ressalvar, que também existem casos de sucesso, em que a família se recompõe e investe no retorno da criança. Infelizmente não são assim tantos os casos mas, mesmo nesses, a criança não ficou isenta de sofrimento emocional, pelo que passou anteriormente e pelo tempo de acolhimento institucional.
Quanto ao acolhimento institucional per si, tanto há a dizer sobre as causas que provocam os referidos problemas emocionais… enorme rotatividade de cuidadores (não só em questão de turnos, mas também dos profissionais), lotação excessiva dos centros de acolhimento/lares, baixíssimo rácio adulto/criança, ausência ou reduzidas de relações de vinculação, técnic@s insuficientes, que não permite a celeridade desejada nos processos, e tantas outras questões!
Deixo algumas sugestões bibliográficas relacionadas com este artigo:
Qualificar o acolhimento em Instituição, 3º capítulo do livro  Acreditar no Futuro, de Isabel Gomes
A criança e o sofrimento da separação, ponto 4 – A criança e a sua colocação. Maurice Berger. Climepsi Editores, 2003
Crescer vazio, repercussões psíquicas do abandono, negligência e maus tratos em crianças e adolescentes, em particular o capítulo 3 que trata o trabalho terapêutico com crianças de instituições. Pedro Strecht, Assírio & Alvim editores, 2002
Manual de boas práticas – um guia para o acolhimento institucional”, Instituto da Segurança Social I.P., 2005
Termino este artigo com uma frase Maravilhosa de António Bagão Félix, numa sua intervenção em Maio de 2004, no Seminário “A criança, as Instituições e a Esperança”. O texto está disponível no livro Casa Pia de Lisboa – um projecto de esperança. As esperanças de acolhimento das crianças em risco. Editora Princípia, 2005.
Um dia na vida destas crianças [em acolhimento institucional] pode ser menos uma oportunidade, menos uma certeza, menos felicidade e certamente, menos esperança.


Fonte:
http://maustratosnainfancia.wordpress.com/2011/08/01/criancas-em-acolhimento-institucional-caraterizacao/

Comentários

  1. Fonte deste artigo:

    http://maustratosnainfancia.wordpress.com/2011/08/01/criancas-em-acolhimento-institucional-caraterizacao/

    Obrigada pela partilha.

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